Soldado Comunista

– Quem caga vence, essa é a máxima do soldado.
Ouvi aquela frase enquanto o sargento cortava um pedaço de carne bem suculenta e espalhava nela as pedras de sal grosso antes de jogá-la na grelha. O fogo crepitou e lançou uma baforada no ar ao beber a gordura e o sangue escorridos da carne. O cheiro me deu fome.
– Não tem por que eu fazer mais do que o outro sargento da minha seção – ele continuou. – Sabe por qual motivo, soldado? – ele me perguntou apontando o garfo para mim.
Hesitei um segundo em responder, não me veio nada à cabeça e dei com os ombros. Ele riu e decidiu me contar.
– É porque eu não vou ter aumento do salário no mês que vem, basta eu fazer o que já fui mandado que não vou receber nenhuma bronca – ele pegou outro pedaço bem grande de carne vermelha e jogou na grelha, que chiou com o contato do bife. – E não me vale de nada ser mais reconhecido dentro do meu setor do que o outro sargento, me explica por quê?
– Por que não vai aumentar seu salário? – perguntei sem entender.
– Porque quanto melhor você é mais requisitado fica, mais estresse carrega sobre as costas, mais responsabilidades e até mesmo o trabalho do seu colega incompetente, e nada de aumento do salário, só problema, e a troco de quê? Do reconhecimento que não paga as minhas contas? Ora essa, quando acabar o tempo de serviço vamos ser esquecidos e eu vou estar de boa na minha aposentadoria.
O fogo estalava apreciando o sangue da carne e meu estômago invejava aos roncos o apetite das chamas que tateavam aquela comida como se pudessem acariciá-la. Uma língua de fogo ousava tirar um pedacinho da nossa carne toda vez que nos distraíamos.
– Mas o senhor não tem medo de levar uma punição? – eu perguntei.
– E por que eu seria punido se estou trabalhando bem? – ele retrucou.
– Mas o senhor diz que não se dedica…
– Soldado, pega essa lata de leite condensado aí do seu lado – ele interrompeu apontando para uma caixa cheia de latas.
Eu me virei e peguei uma lata, e fui até ele para entregá-la.
– Muito bom, por que você não pegou uma cerveja pra mim também?
– Porque o senhor não pediu… – respondi vacilando.
– Exatamente, eu dei uma ordem e você a cumpriu, meus parabéns, você fez melhor que muito soldado que não entende nem uma maldita ordem sequer.
Eu já estava sem paciência com aquela conversa irritante, mas se eu saísse dali eu ia perder a oportunidade de ser um dos primeiros a saborear aquele churrasco. Então, do nada, ele soltou a sua última frase que me deixou desconcertado:
– Você é um baita soldado comunista.
Minha cabeça esquentou, mas ele continuou:
– Você não quer se destacar, quer apenas que todo mundo ganhe igual e isso não incentiva ninguém a trabalhar mais do que se espera. Como pode haver progresso se as pessoas não tiverem boas ambições? Tratar todas como iguais não incentiva ninguém a ir adiante.
Ele parecia estar falando mais de si mesmo do que de mim.
– Aonde o senhor quer chegar? – perguntei ainda sem compreender muito bem.
– Que aqui você é só mais um qualquer, soldado, parece até um comunista mas é um soldado.
Minha vontade foi de perguntar o que aquele sargento tinha tomado, mas não queria parecer desrespeitoso e ser expulso antes que pudesse provar um pouco daquela carne. Nunca que eu ia ter dinheiro pra bancar um baita churrasquinho daqueles e olha que aquela carne era só uma miséria de resto da missão que havia sido separada para que desfrutássemos de uma boa comida enquanto aguardávamos o término das atividades do último dia. Raridade para o soldado, aquilo era um luxo que eu fazia questão de aproveitar.
Nunca entendi muito de conceitos sobre comunismo, socialismo, fascismo, paisagismo e todos esses coisismos da vida, mas eu entendia de ideias e gostava de ler um pouco, já que eu não seria soldado pro resto da vida e nem pretendia ficar no Exército por muito tempo.
Tentei manter o silêncio, mas acho que o sargento já estava bem na quarta cerveja e preparado para seguir com suas ousadas discussões filosóficas sobre a falta de incentivos que ele entendia serem propositais para humilhar o militar que se dedicava e passava da sua hora trabalhando em prol das Forças Armadas. Eu estava quase aliviado pelo silêncio quando o sargento voltou a falar:
– Pega o pacote de chiclete aí pra mim.
Não hesitei, peguei o pacote e entreguei nas mãos dele.
– Quer um chiclete, soldado?
Neguei com a cabeça. Eu queria era a carne.
– Que pena. Gente como você me deixa muito irritado, acha que sabe de tudo só porque é mais novo, mas a verdade é que não sabe de porra nenhuma.
Franzi a testa. O que uma coisa tinha a ver com a outra? Que sargento esquisito.
– Pega duas latas de cerveja pra gente na geleira, vai – ele ordenou. – A carne tá pronta. Vamos aproveitar pra comer enquanto o resto do pessoal não chega e detona nossa janta.
Comemorei discretamente e fui atrás das cervejas. O sargento se sentou ao lado do fogo e suspirou. Da distância que eu estava, olhei de escanteio para ele e observei um homem triste e pensativo, não tinha certeza se já eram as latas de cerveja que o tinham deixado daquele jeito ou se era ele que disfarçava suas frustrações da vida naqueles discursos esquisitos. O Exército é cheio de gente estranha às vezes, mas a gente aprende a lidar com alguns como se fossem da nossa própria família. Decidi a contragosto que iria ouvir um pouco mais do que aquele estranho homem tinha pra me contar. Não precisei perguntar nada para ele soltar mais uma verdade quando eu me aproximei:
– No fim das contas eu acho que fui eu que virei um soldado comunista e passei a odiar cada miserável que se preocupa mais com dinheiro do que com a própria família.
Observei o velho sargento sentado pegando o primeiro pedaço de carne e se preparando para cortá-la, então ousei perguntar:
– Do que tem tanta raiva, sargento?
– Do miserável do meu melhor amigo – ele respondeu sem rodeios.
Olhei para ele esperando uma melhor definição. Ele largou o cutelo, pegou uma lata de cerveja, deu um gole, colocou-a de escanteio e me encarou confessando:
– Eu tinha um amigo que estava cogitando uma vaga para trabalhar e morar no exterior e ele fazia de tudo para conseguir ser bem visto e tentar almejar melhores condições de vida e salários – o sargento pegou a lata e deu mais um gole. – Ele cresceu junto comigo, mas aquele desgraçado aceitou uma missão bem no dia do meu casamento mesmo tendo tido a escolha de recusá-la.
– Nossa – cochichei.
– Sabe o que ele ganhou?
– O quê?
– Nada – o sargento respondeu em seco.
– Ele não conseguiu a vaga no exterior? Nem uma medalha ou uma homenagem?
– Absolutamente nada. Aquele babaca prometeu pra mim que iria me apoiar onde quer que eu fosse e as escolhas da vida que eu fizesse. Quando ele não veio ao meu casamento entendi que qualquer outra coisa era mais importante do que o melhor amigo que ele já tinha chamado de irmão uma vez.
Dava pra ver que o sargento tinha aquela mágoa entalada na garganta, que tinha vontade de esfregá-la na cara do amigo, mas que não o faria jamais porque ele ainda o considerava como irmão e já não havia mais como voltar atrás. Uma pena o amigo dele ter feito isso com ele. Tantas vezes deixamos de viver os momentos mais importantes da vida de nossos amigos porque estamos tão focados apenas em nós mesmos – deixamos de entender seus motivos e seus sonhos e acabamos nos distanciando. Acredito que, a não ser que você esteja salvando o mundo, você deve o mínimo de sacrifício por aqueles que você ama.
– A ambição pelo dinheiro estraga as pessoas que não sabem usá-lo e afasta os amigos – o sargento disse.
– O senhor está falando como se fosse comunista.
– Você nem sabe o que é um comunista, metade da porra desse país acha que sabe alguma coisa sobre comunismo.
Olhei para a minha lata de cerveja e pensei duas vezes em tomá-la, já estava claro que o sargento estava passando da conta, e eu não queria ficar como ele.
– Desculpe o palavreado, mas é o que as pessoas falam, né? Não dá pra esconder bonitinha a realidade assim.
– Tranquilo, sargento.
– De qualquer maneira, soldado, é melhor ignorar meus conselhos de bêbado.
O sargento pegou mais uma lata de cerveja e eu decidi que já havia chegado ao meu limite da paciência, pelo menos eu finalmente estava com um pedaço de carne no meu prato e podia desfrutar daquele churrasco. Eu precisava comer logo porque a minha hora de descanso iria começar em alguns instantes e eu poderia tirar um cochilo enquanto os oficiais da missão decidiam se voltávamos para casa naquele dia ainda ou se dormiríamos mais uma noite ali antes de desmantelar o acampamento.
Enquanto eu comia, um grupo de oficiais com vários soldados voltou do meio do mato e se sentou junto ao fogo, os soldados iam comer mas um capitão surgiu dando ordens logo após olhar para o relógio e decidir que partiríamos ainda naquele dia:
– Atenção soldados, nada de comer agora, eu quero que vocês peguem aqueles garrafões de água, camas de campanha, redes, armamentos e toda carga que trouxemos e coloquem de volta no caminhão. Quem levar mais material vai ganhar alguma coisa que eu ainda vou pensar, depois vocês podem comer.
Olhei para o sargento, ele ergueu uma lata de cerveja em minha homenagem me fazendo perceber aquela maldita verdade, afinal ele tinha razão, ali naquele lugar talvez fosse melhor ser um soldado comunista, não porque eu acreditasse nessa ideologia, mas porque eu finalmente tinha entendido que mesmo os melhores soldados são descartados quando acaba o seu tempo de serviço e que, no final das contas, quem caga vence.


Este conto faz parte da coletânea Kanove Molotove – Histórias de um Exército Admirado e Odiado (título provisório).

Deixe um comentário